sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

BRASILÂNDIA MOSTRA SUAS GUERREIRAS

Noêmia, Francisca e Maria Cícera integram uma rede de associações que luta para melhorar a vida dos moradores

Na Brasilândia falta muita coisa, mas a região é repleta de mulheres guerreiras. Quatro delas, personagens de ficção, protagonizam a minissérie Antônia, que estréia amanhã na TV Globo. Várias outras - gente de carne, osso e fibra - lutam contra as dificuldades de uma das áreas mais abandonadas e violentas da cidade de São Paulo. Em breve, milhões de brasileiros serão apresentados a personagens como Preta, interpretado pela rapper Negra Li, que nasceu na Brasilândia e continua a freqüentar a região, onde reside a sua família.

Entre os telespectadores, estará a líder comunitária Maria Cícera de Salles, que faz parte de uma rede de associações de moradores em constante luta para melhorar as condições de vida dos 270 mil habitantes dos 41 bairros que integram a Brasilândia, ao norte da metrópole. 'Acho muito bom que a região seja mostrada e conhecida. Quem sabe assim o poder público comece a nos dar mais apoio', anima-se Maria Cícera.
Com estrutura urbana inexistente ou precária, vizinha à Serra da Cantareira, importante região de mananciais, a Brasilândia tem sido palco de dramas sociais e ambientais.

Nas décadas de 80 e 90, a região passou a freqüentar o topo do ranking de homicídios, estupros e outros crimes graves. Atualmente a violência está em queda na Brasilândia, mas ainda longe de níveis aceitáveis. Uma situação rapidamente constatada pelo cineasta Daniel Santiago, que, no dia em que iniciou a produção de um documentário sobre a região, em setembro, deparou-se com uma aglomeração de pessoas. 'Foram encontrados corpos carbonizados de adolescentes envolvidos com drogas.'

Santiago conta que procurou a notícia do duplo assassinato em vários veículos de mídia no dia seguinte. Para a sua surpresa, não encontrou menção alguma ao ocorrido. 'Aí caiu a ficha: morte de jovens em lugares como Brasilândia muitas vezes já não é mais nem notícia.'

'A violência começa na falta de condições de moradia e de sobrevivência digna', diz a educadora e líder comunitária Noêmia Mendonça. Nascida no Ceará, Noêmia chegou ao bairro de Jardim Damasceno em 1977, aos 17 anos de idade, e tornou-se um dos protagonistas de uma saga familiar incomum. Em São Paulo, seu pai empregou-se como operário da construção civil, e sua mãe, na prefeitura, fazendo serviços gerais. O casal, que não concluiu o ensino fundamental, criou 11 filhos na Brasilândia - apenas dois não completaram o ensino médio e seis têm formação superior.

Noêmia foi uma das criadoras do projeto Arte na Rua, que atende mensalmente cerca de cem crianças e adolescentes. As atividades, que incluem oficinas e cursos de arte e artesanato, esportes e exercícios de leitura e escrita, acontecem numa sede tão precária quanto surpreendente, no centro de um vale cercado por morros apinhados de casas e ao lado de um córrego transformado em esgoto a céu aberto. Trata-se de uma casa de dimensões modestas, parcialmente pintada, que ainda tem algumas divisórias remanescentes de sua primeira construção, de madeira.

Irmã mais nova de Noêmia, a assistente social e educadora Francisca Pini, que acaba de obter seu doutorado pela PUC de São Paulo, também trabalha em projetos sociais na Brasilândia. Professora universitária, ela coordena a assistência a jovens infratores e em situação de risco desenvolvido pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Francisca aguarda a estréia da minissérie com bastante expectativa. 'Gostaria de ver na T V o que encontro aqui diariamente: gente que consegue sonhar, criar e avançar mesmo nas condições mais adversas, que quer e merece mais atenção e oportunidade.'

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Texto de Flavio Lobo, publicado originalmente no O Estado de S.Paulo - Seção: Metrópole - 16/11/06

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