O Garrincha de pernas retas
Crônica escrita por Célio Pires
Seu nome correto poucos sabiam, era Edístio, mas apenas apenas lhe chamavam de Sarrinho, apelido ganho na rua, onde se criou, ali na rua Parapuã, entre o ponto final e a igreja de Santo Antônio. Era gozador ao extremo, não deixava passar nada ou alguém sem que fizesse uma gozação, uma brincadeira. Como “tirar sarro” era a gíria do momento para gozação, naturalmente Sarrinho foi um bom apelido dado. No entanto, essa não era sua principal característica, o que dominava como ninguém era outra arte: a do futebol.
Ninguém conseguia tirar-lhe a bola. Az do drible, parecia que a bola colava em seus pés; não era de fazer tabela, lançamentos, mas fazia gols, um atrás do outro. Nos rachas da molecada, o seu time, ao qual eu, às vezes, jogava, sempre ganhava, por larga vantagem, era uma covardia ficar no time adversário e correr e rodopiar atrás de Sarrinho, sem êxito.
O futebol era sua cartilha e sua caneta, tanto que não conseguiu ir muito à frente nos estudos, para sair do primeiro ano do primário foi trabalhoso, já que só tinha cabeça para o futebol. Sua escola: o antigo campo do Bacia, que ficava a uns 300 metros do início da Servidão Pública, hoje Estrada Lázaro Amâncio de Barros, local das inúmeras peladas, ou em qualquer um dos campinhos que abundavam nas antigas ruas de terra de uma Brasilândia que só tinha asfalto na rua central e automóvel de vez em quando.
Sarrinho era excepcional com a bola nos pés. Todos prediziam um futuro de glórias para ele em um time profissional. Era o nosso Pelé branco, um Garrincha de pernas retas, de corpo quase esquelético, alto e ágil, ligeiro, sempre rumo ao gol adversário. Nosso time ganhava todas as flâmulas nas disputas entre ruas, entre vilas.
Assim ele foi crescendo pelas ruas do bairro, dos campinhos sem traves, dos jogos sem goleiros, para os campos maiores e em times de uniformes e numeração nas costas –foi se esmerando e lapidando seus piques, sua arte de humilhar quem tentava tirar-lhe a bola. No “Time dos Padres”, formado por religiosos de uma missão que reunia a molecada em várias equipes no campo do Bacia, isso no começo dos anos 60, foi aprendendo a se posicionar em campo, passou para os times de várzea, onde começou a encarar as botinadas dos zagueiros “arranca-toco”. Depois foi jogar do time da Mocidade Paulista, depois no da Mocidade Brasileira e em outros, sempre apavorando as defesas, com seu drible desconcertante, inigualável.
Daí para frente fui perdendo ele de vista. Dizem que tentou passar por uma destas peneiras dos times “grandes”, mas dentre tantos aspirantes, não prestaram muita atenção ao nosso Sarrinho; outros me contaram que ele foi barrado por problemas de respiração deficiente, ou por outra desculpa qualquer dado por um treinador sonolento.
O certo é que, certa hora da vida, abandonou o sonho de se profissionalizar, mas continuou na várzea levando trancos e caneladas. Por falta de apoio ou por falta de insistência deixou de tentar. Perdeu o Brasil. Foi mais um talento raro, surgido na periferia, que ficou à margem, esperando a sua vez; vendo outros com menos predicados sagrarem-se vencedores. Outros melhores nascidos ou com mais sorte.
Seu erro foi ter vindo de uma terra de ninguém, de uma periferia esquecida de Deus e de Governo e que até hoje pena com suas carências e descasos. Sarrinho mereceria muitas e muitas páginas de jornal e muitos flashes vida afora, mas não deu, ficou apenas nas reminiscências de alguns velhos amigos de um bairro, de uma turma de meninos sonhadores, que um dia pensaram em escrever história.
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